A teologia cristã, como a Bíblia a apresenta, é uma unidade
orgânica; e, como tal, deverá ser estudada, atendendo-se ao todo, e não a cada
uma das partes em separado. Nenhuma doutrina poderá ser convenientemente
estudada e aprofundada, sem a enquadrar-mos no sistema geral a que pertence. O
nosso objetivo é, pois, tratar da revelação e da inspiração, de acordo com a
doutrina bíblica. É necessário, no entanto, começarmos por distinguir esta
doutrina das restantes verdades do Cristianismo. A doutrina da inspiração bíblica
é, como veremos, uma parte da doutrina geral da revelação que, por sua vez, se
baseia nas doutrinas fundamentais da criação e da redenção. Nas páginas que se
seguem serão expostas estas diferentes relações, de maneira a compreendermos
melhor a doutrina que se pretende inculcar.
I. A
REVELAÇÃO
A palavra "revelação" pode ser tomada em dois sentidos:
ativo e passivo. No primeiro caso significa a atividade de Deus, enquanto se dá
a conhecer aos homens; no segundo, o conhecimento que lhes é comunicado. A
idéia bíblica de revelação deve partir duma indução da evidência, para o que
julgamos bastarão as páginas que se vão seguir.
a) O
Velho Testamento
É freqüente o Velho Testamento afirmar que a existência e a
história de Israel, como nação, e a sua religião como a Igreja, foram o
resultado evidente da revelação divina. Deus revelou-Se na aliança efetuada com
Abraão como seu Deus, comprometendo-Se a continuar essa aliança com a sua
descendência (#Gn 17). Foi assim que os conduziu do cativeiro para a Terra Prometida,
transformando-os num povo que passou a servi-Lo (#Êx 6.2-8; #Êx
19.3-6; #Sl 105.43-45). Deu-lhes a Sua "Lei" (torah, lit.
"instrução"), e ensinou-lhes como deviam prestar-Lhe culto. Levantou
uma série de intérpretes para lhes anunciarem "a Palavra do Senhor".
Vezes sem conta e em momentos decisivos da sua história, esse Deus demonstrou o
completo domínio que possuía das circunstâncias, revelando o que por eles iria
fazer antes do acontecimento (cfr. #Is 48.3-7).
Israel tinha a consciência de ser o único povo a travar tais
relações com Deus (#Sl 147.19-20), para quem a religião significava
precisamente o conhecimento de Jeová, e supunha a revelação do Mesmo na aliança
que fizera. A não ser assim, os gentios cairiam na idolatria. A religião revelada
de Israel iria reparar as blasfêmias proferidas por outra religião qualquer.
Por isso, quando Deus Se manifestou a outras nações, com quem não tinha
efetuado qualquer aliança, foi exclusivamente para os julgar pelos seus pecados
(#Êx 7.5; #Ez 25.11,17; #Ez 28.22-24).
O que o Velho Testamento supõe da Sua revelação é que não a
considera total, perfeita, mas apenas preparatória para algo de maior. Os
profetas anteviam aquele dia em que Deus iria revelar-Se de maneira mais
prodigiosa com o aparecimento do Messias, que iria reunir o povo disperso e
estabelecer o Seu reino entre os novos habitantes desse reino. Os céus e a
terra renovar-se-iam (#Is 45.17-25); seria transformada a religião de Israel; enfim, todas as nações
veriam e compreenderiam a glória de Deus em Israel (#Is
40.1-4; #Ez 36.23). É o que dá a entender o fecho do Velho Testamento (#Ml 4).
b) O
Novo Testamento
Os escritores do Novo Testamento estavam convencidos de que só em
Cristo se encontrava o significado da história judaica e do Velho Testamento.
Por outras palavras, que o desenrolar dos acontecimentos em Israel, desde o seu
início e através de todos os tempos, bem como a composição do Velho Testamento
foram orientados por Deus, tendo em vista a encarnação. As deduções desta
doutrina levaram, naturalmente, à idéia teológica fundamental pela qual se
entende a revelação. A idéia é esta: Deus, Criador Onipotente, que "faz
todas as coisas segundo o conselho da Sua vontade" (#Ef
1.11), previu a queda do gênero humano pelo pecado. Determinou, então,
glorificar-Se através da Igreja; e, para isso, designou Seu Filho, que iria
salvá-la, na qualidade de Ministro e Medianeiro de Deus. A história do mundo
foi, e será sempre, nada mais nada menos que a execução do Plano divino,
infalível sem dúvida, nos seus objetivos. Desde que o Filho de Deus apareceu
para instaurar o Seu reino messiânico, foi enviado por Deus o Espírito Santo
cuja missão no mundo era não só completar a revelação já começada na terra, em
conformidade com os desígnios divinos, mas também, através da fé, conduzir o
Seu povo à salvação prometida. A revelação do Plano de Deus era, pois,
completada pelo Espírito, que o deu a conhecer aos apóstolos. Mas a plena
execução só em Cristo se realizará com o Seu "aparecimento" (parousia),
quando a Igreja obtiver a sua perfeição.
Esta é, a traços largos, a doutrina do Novo Testamento acerca da
revelação. Embora mais explícita nas Epístolas Paulinas (cfr. #Rm
8.28-39; #Ef 1.3-14; etc.) e no Evangelho de S. João (cfr. #Jo
6.37-45; #Jo 10.14-18; #Jo 10.27-29; #Jo 16.7-15; 17), não é difícil notá-la mais ou menos em todos os livros,
podendo ser reduzidos a três classes os principais textos que a eles aludem.
1.
TEXTOS REFERENTES À PESSOA DE CRISTO-O Filho é a imagem do Pai (#2Co
4.4; #Cl 1.15; #Hb 1.3), sendo assim a perfeita revelação do Pai aos que têm olhos para
ver (#Jo 1.18; #Jo 14.7-11). Toda a "plenitude" de Deus habita no Filho encarnado
(#Cl 1.19; #Cl 2.9). Todos aqueles que compreendem o significado da vida e morte de
Cristo, reconhecerão os desígnios ou "a sabedoria" de Deus relativos
à salvação da Igreja (#Cl 2.2-3; #1Co 1.24; #1Co 2.7-10). Ninguém pode compreender a revelação sem uma luz espiritual
vinda do alto (#Jo 3.3-12; #Jo 6.44-45; #Mt 16.17; #Gl 1.16).
2.
TEXTOS REFERENTES AO PLANO DIVINO-O Plano divino para a salvação do Seu Povo
escolhido, tanto judeu como gentio, era "o mistério", a divina
"sabedoria", que Deus concebeu antes da criação, mas conservou oculta
até ao tempo dos apóstolos. Só então veio a lume o verdadeiro significado da
eleição e da história de Israel, e bem assim da revelação do Velho Testamento.
A finalidade de Deus foi sempre, não a salvação de uma das muitas nações do
mundo, mas a criação duma nova nação, cujos membros seriam recrutados de todas
as outras, e passariam por um novo nascimento espiritual (cfr. #1Pe
2.9-10). Os regenerados seriam glorificados, tal como o seu Chefe
("as primícias" do novo povo, #1Co 15.20,23), de
sorte que, ao chegar ao Céu no Seu corpo glorioso, fosse um penhor e uma
garantia para os que um dia partilhassem com Ele dessa glória. Várias vezes
Paulo alude à revelação deste mistério (#Ef 1.8-12; #Ef
3.3-11; #1Co 2.7-10; #Rm 16.25-26; #Rm 11.25-36; #2Tm 1.9-11). A fonte desta revelação é Deus; o Mediador, Cristo (#Gl
1.12; #Ap 1.1); o veio de transmissão, o Espírito Santo (#1Co
2.10-12; #2Co 3.15-18; #2Co 4.6; #Ef 3.5). Para que pudesse ser transmitido intato à Igreja, o Espírito
inspirou as palavras do testemunho apostólico (#1Co 2.13), tal
como inspirou as palavras de Cristo (#Jo 3.34; #Jo
12.48-50), de maneira a formarem um "corpo de doutrina" (typos; lit.
"modelo" #Rm 6.17; #2Tm 1.13). Esta é, sem dúvida, a "sã doutrina" (#1Tm
1.10; 6.3; #2Tm 4.3; #Tt 1.9; #Tt 2.1), a "tradição" apostólica (#2Ts
2.15; #2Ts 3.6), a orientadora da fé e a vida das Igrejas.
3.
TEXTOS REFERENTES À EXECUÇÃO DO PLANO DIVINO-Deus manifesta os Seus desígnios
através de palavras e de ações; e cada uma destas ações, que marca um passo
além no Seu Plano da história redentora pode chamar-se, apropriadamente, uma
"revelação". O Novo Testamento conhece duas revelações deste gênero,
que devem ainda realizar-se: a aparição do anticristo (#2Ts
2.3-8) e a parousia de Jesus (#1Co 1.7; #2Ts 1.7-10; #1Pe 1.7,13). Esta última encerra a história e precede o dia do Juízo Final.
Cristo revelará, então, os eternos desígnios de Deus relativos aos impenitentes
e aos santos, a manifestação da ira para aqueles e a glória para estes (#Rm
2.5-10; #Rm 8.18; #1Pe 1.5).
Tal é, em resumo, o material bíblico em que assenta a doutrina teológica
da revelação.
c) A
Revelação Original
A doutrina da revelação baseia-se no fato de Deus ter criado à Sua
imagem e semelhança o homem, que O devia conhecer, amar, servir e glorificar.
Para ser verdadeira, a religião do homem tem de ser baseada na revelação de
Deus. Foi assim que Deus Se revelou a Adão, para que este vivesse em amizade
com Ele. O primeiro conhecimento da Divindade, teve-o Adão através da restante
criação, que acabava de sair do nada. O mundo que contemplava oferecia-lhe
testemunho eloqüente do poder e da sabedoria do Criador. Não obstante a queda
de Adão, (#Gn 3.18; #Rm 8.19-22), o Universo ainda proclamava a glória de Deus (#Sl 19; #Rm
1.19-20). E antes, como seria? Mais eficazmente, sem dúvida. Adão
conheceu ainda Deus pelo conhecimento de si próprio, pois como mais nobre e
mais perfeita criatura contribuía para revelar e proclamar mais alto a glória
de Deus. A Providência divina deu-lhe ainda a conhecer a bondade do Criador.
Se, apesar do caos que sobreveio ao mundo após o pecado, o decorrer dos
acontecimentos ainda dá este testemunho (#At 14.17), o
que não seria quando Adão só conhecia o paraíso, os animais que Deus lhe dera
para dominar, e a esposa que criara para ele! (#Gn 2.18-24).
Finalmente o testemunho das obras de Deus foi suplantado pela revelação verbal,
quando necessária (embora não saibamos como transmitida) (#Gn
2.16-17).
Talvez não compreendamos devidamente esta doutrina. O conhecimento
que Adão tinha de Deus no Éden, antes da queda, está tão fora da nossa
compreensão, como o conhecimento de Deus que a Igreja gozará nos Céus depois da
Ressurreição. Mas as características permanentes da auto-revelação divina
merecem ainda mais algumas considerações:
1. A
FINALIDADE DA REVELAÇÃO-Deus deu-Se a conhecer ao homem, a fim de que este
atingisse o objetivo para que foi criado: para O conhecer, amar e adorar. O
Criador é transcendente e inacessível às Suas criaturas, até ao momento que Se
revele a elas; e o conhecimento que o homem tem de Deus é correlativo e
conseqüente à primeira auto-revelação divina. Adão no Paraíso necessitava da
revelação para viver em amizade com Deus.
2. OS
MEIOS DA REVELAÇÃO-Revelação é a manifestação pessoal de Deus às Suas criaturas
racionais. A afinidade que ela inicia é comparada, na Escritura, à do marido
com a mulher, do pai com o filho, do amigo com amigo (cfr. #Jr 3; #Os
11.1; #Is 41.8; #Mt 7.11; #Jo 15.15; #Ef 5.25-27). Tal afinidade ou parentesco não poderia ser criado sem que Deus
Se dirigisse pessoalmente ao homem. É Deus quem deve abrir-Se, quem deve falar.
Agir sem uma explicação não é meio normal para se dar a conhecer. Adão não
podia limitar-se em ver Deus apenas nas Suas obras; necessitava de O ouvir, de
receber a Sua revelação verbal.
Certamente,
revelação é mais do que uma simples informação comunicativa, tal como a fé é
algo mais que o mero conhecimento das verdades. Nas revelações humanas as
atitudes pessoais não podem, por natureza, exprimir-se duma forma verbal. Pode
indicar-se a sua existência, definir-se-lhe a natureza, por meio da palavra,
mas só através da ação, podem-se exprimir e manifestar devidamente. Por isso,
quando Deus revela o Seu amor pela humanidade, o significado profundo contido
nas palavras que pronuncia só será compreendido à medida que forem conhecidas
as ações divinas. A atitude pessoal de Deus para com o homem requer, portanto,
palavras e obras em matéria de revelação. O que importa, é frisar que
dificilmente se pode admitir a revelação sem palavras.
3. A
EFICÁCIA DA REVELAÇÃO-Que insondável mistério este, o de um Deus infinito dar a
conhecer os Seus pensamentos ao homem, criatura mortal e finita! Não se
imagine, todavia, que, de forma alguma, Deus é impedido na Sua ação reveladora
por qualquer obstáculo humano. É certo, porém, que o conhecimento que o homem
teve e tem acerca de Deus é imperfeitíssimo e, em muitos casos, não se adapta
convenientemente ao seu objeto. Mas Deus, Criador da inteligência humana,
preparou-a de maneira a poder compreendê-Lo perfeitamente no caso de lhe fazer
qualquer revelação, sobretudo no que respeita à religião. Adão podia assim
compreender Deus, quando Este Se dignasse revelar-Se-lhe. É assim que, ao
manifestar-Se ao homem pecaminoso, Deus concede-lhe a faculdade de reconhecer a
Sua Palavra e de a receber tal como é. Ao ato de confiança que resulta do
exercício desta faculdade, dá a Escritura o nome de fé. Em #Hb
11.3 é a própria faculdade que assim é denominada. Pode-se, pois,
afirmar que Adão no Paraíso tinha fé, e que quando o Espírito concede a
faculdade da fé àqueles a quem Deus pretende dar-Se a conhecer, isto nada mais
é que a restauração daquilo que o homem perdeu com a queda. Após a queda, o
homem arriscou o seu estado primitivo e corrompeu a sua natureza. Deus
adaptou-Se, por isso, à nova situação, integrando-o no processo redentor que
logo iniciou, de maneira a remediar os efeitos do pecado. Mas os três aspectos
da revelação, que notamos, ficaram e ficam constantes e firmes.
d)
Deus revelou-se como Redentor Por causa do pecado o homem perdeu a
possibilidade de apreender e compreender o testemunho que a criação dava de
Deus. O significado e a mensagem do livro permaneceram os mesmos, mas ele é que
não sabia lê-lo. E os Céus proclamavam a glória de Deus a ouvidos surdos.
"Não se importaram de ter conhecimento de Deus" (#Rm
1.28). O homem deixou de amar e servir naturalmente o Criador,
"porque a inclinação da carne é inimizade contra Deus" (#Rm
8.7). Apenas no coração lhe ficou uma ligeira idéia de Deus, isto é,
uma noção de que havia algo ou alguém superior a ele, merecedor de que se lhe
preste o devido culto; mas o homem não se dignou atribuí-lo ao seu criador. Sob
a influência da descrença agora, contrariamente à Escritura que a condena,
reina a cegueira e negação absoluta do verdadeiro Deus (cfr. #Rm
1.21-32; #Ef 2.2,3; #Ef 4.17-19).
Nestas condições é clara a insuficiência da auto-revelação na
criação e da Providência de Deus. Mas Deus ainda Se manifesta nas Suas obras (#Rm
1.19-20), embora os homens fechem os olhos "detendo a verdade em
injustiça" (#Rm 1.18). Ora, a continuação da revelação original não leva ao
conhecimento de Deus e apenas serve para não se poder desculpar a ignorância do
mundo. Supondo mesmo que o homem conseguisse ler bem "o livro das
criaturas", essa leitura só e levaria ao desespero. Porque esta chamada revelação
geral traz o conhecimento dum Deus que não admite mas castiga a
desobediência e a ingratidão do homem (#Rm 1.18).
Odiando, todavia, o pecado, Deus ama o pecador. Só o sabemos através duma revelação
especial, cujo centro é ocupado pela
figura de Jesus.
Desde
a queda que o Criador se deu a conhecer como Redentor, a surgir numa
determinada época da história humana, mas sempre envolto naquilo que os
apóstolos consideravam um "mistério". Todo o plano girava em torno da
missão terrena do Filho encarnado. Em Cristo, apenas, se cumpriram todos os
símbolos, figuras e representações a que aludem as profecias das Escrituras do
povo de Israel (cfr. #Mt 5.17; #Lc 24.27; #Jo 5.39; #At 13.26-33; #Hb 7.10). É nesta missão que se baseia toda a atividade redentora de
Cristo. Quando subiu ao Céu, por exemplo, o Senhor entrou na posse do Seu
ministério celestial, de onde passou a conceder aos crentes, através do
Espírito, as graças que prometera nesta terra, embora esse ministério só tenha
o seu epílogo quando da segunda vinda de Mestre. Os desígnios de Deus a
respeito da redenção, bem como a Sua plena e definitiva manifestação, só serão
revelados quando a Igreja atingir a plenitude de perfeição, que lhe permitirá
manifestar a glória de Deus (#Ap 21.11), e aparecer com o seu
Salvador glorificado (#Ap 21; 22.5). Entretanto, continuará a manifestar-se a graça de Deus. A
nova criação, por isso, tanto ou mais que a antiga, e a graça especial, tanto
ou mais que a providência comum, são motivo de revelação, a manifestar mais uma
vez a glória de Deus.
e) A
revelação verbal
No âmbito da Redenção que abrange a salvação da Igreja, a
revelação verbal tem um lugar primordial. Antes de nada mais, era um elemento
importante na série de atos pelos quais a Redenção foi operada. Sem a revelação
verbal nunca Abraão teria entrado em Canaã, nem Moisés conduzido Israel do
Egito, e ainda a vida de Jesus teria corrido risco logo nos primeiros anos da
Sua infância (cfr. #Gn 12.1-5; #Êx 3.6-13; #Mt 2.13-15). Em seguida, a revelação verbal foi sempre necessária como
fundamento da fé. Neste aspecto salienta-se tal importância, sobretudo quando
se analisa o significado soteriológico da fé. Como atividade, a fé não é só o
instrumento que une o pecador a Cristo, mas, como faculdade, é o órgão daquele
conhecimento e daquela amizade com Deus, outrora perdida, que pode, no entanto,
reaver-se através da Redenção.
Ora, o objeto que movimenta esta faculdade é a Palavra de Deus
como tal (cfr. #1Ts 2.13). A fé "ouve a Sua voz" e responde à Sua Palavra de
promessa confiada e obedientemente. Sem uma palavra proferida por Deus, a fé
não pode subsistir (#Rm 10.17). O motivo é evidente. Sem uma palavra de explicação, a obra
redentora de Deus não seria facilmente reconhecida. Como vimos, sem se pronunciar,
as intenções do Criador não poderão ser compreendidas pela criatura. O caso da
encarnação dá a entender que a mais compreensiva das revelações divinas é a de
mais difícil compreensão por parte do homem. Cristo, a Palavra de Deus em
pessoa, realizou totalmente os desígnios redentores do Pai. Em Cristo, Deus
manifestou-se claramente na Sua obra redentora, e por isso mesmo, o caso de
Cristo transcende em absoluto o poder de interpretação do homem. "Não é de
crer", escreve B. B. Warfield, "que a suprema revelação de Deus em
Jesus Cristo fosse conhecida e compreendida, sem uma preparação, e esta sem ser
acompanhada de revelações explicativas por palavras". Ainda não é tudo.
Como poderíamos, sem ninguém no-lo dizer, acreditar numa verdade misteriosa e quase
absurda, qual é a de Jesus-Deus encarnado, que veio a este mundo morrer numa
cruz para resgatar o homem do pecado? Para crermos, outorgou Deus uma
explicação verbal desse caso miraculoso do Homem-Deus, que vem a ser o
evangelho, ou o kerygma dos apóstolos, a anunciar o dom de Deus da Palavra viva e das
promessas de vida eterna aos que O receberem. Assim, parece que a revelação
verbal relativa à ação redentora de Deus na história não é um mero apêndice a
essa ação, mas parte integrante da mesma, como elo da cadeia de acontecimentos
a que dizem respeito aquelas revelações. Se bem que o programa da redenção
implique a salvação do homem, isso não basta. É necessário que os pecadores
voltem à fé e ao conhecimento de Deus através do Evangelho, cujas promessas se
mantêm idênticas em toda a história da redenção, desde Adão e Abraão até aos
nossos dias, isto é, uma aliança em que Deus se prontifica a ser o Deus do Seu
povo, Deus protetor e justo Juiz, não somente neste mundo mas também no outro,
em especial para premiar os que n’Ele crêem e esperam. A fé salvadora tem sido
a mesma, desde Abel até hoje (#Hb 11.4). Quanto ao seu
conteúdo, porém, a promessa vai-se tornando cada vez maior. É que, adentro do
plano dessa aliança, Deus vai revelando novas bênçãos particulares, já
incluídas nesse plano, e o fundamento objetivo em que se baseia, que é a Sua
obra redentora. É um processo que Deus vai utilizando sem cessar através dos
séculos. Trata-se dum progresso, não no sentido de que cada nova revelação
venha considerar a anterior como antiquada ou descabida, mas no sentido de que
Deus vai ampliando aquilo que já ensinara, explicando aquilo que pretende
fazer, até se aperfeiçoar o modelo da verdade que tem a sua plenitude em
Cristo. Foi assim que, na devida altura enviou o Seu Filho para executar a Obra
da Redenção, coroando em seguida o plano da revelação com o Evangelho. Em
princípio, esse plano esteve sempre intimamente ligado ao plano de Deus acerca
da história da Redenção. A cumular esse plano, a figura do Homem-Deus, Jesus Cristo.
A revelação verbal manifestou-se de múltiplas maneiras. Por vezes,
casos anormais, como visões, sonhos, e a inspiração profética, que podia ir
desde as mais prolongadas meditações aos arrebatamentos do êxtase. Noutros
casos Deus servia-Se apenas do Seu divino concurso, isto é, cooperando no exercício dos dotes
naturais, e assim levando-os ao conhecimento da verdade através dos processos
normais do pensamento: a investigação histórica, a exegese das Escrituras
Canônicas, a meditação e a oração, o raciocínio lógico e teológico. Os livros
históricos e da Sabedoria do Velho Testamento, bem como todo o Novo Testamento,
exceto o Apocalipse, parece que supõem uma revelação deste gênero. Limitações
do espaço não nos permitem tratar mais pormenorizadamente os diversos modos de
revelação mas é importante notar antes de prosseguirmos que na Escritura não há
indicação de diferença da integridade e pureza da revelação obtida por aqueles
processos. Embora pareçam limitados em si mesmos, todos os órgãos de revelação
são, na mão de Deus, um instrumento eficaz para o Seu desígnio.
f) A
revelação bíblica
Deus quis deixar escrito aquilo que revelou. Mas o livro que
escolheu para tal fim não contém todas as revelações verbais (cfr., por
exemplo, a referência em #2Cr 9.29 aos livros proféticos que desapareceram), mas apenas as que se
relacionavam com a finalidade do livro, que era não somente apresentar um
fundamento para a fé pessoal e um guia para o crente, mas também permitir à
Igreja que o compreendesse, que interpretasse a sua história, que reformasse e
purificasse continuamente a sua vida e repelisse todos os assaltos, -quer lhe
venham de dentro, pelo pecado e pela heresia, -quer de fora, pela perseguição e
pelas ideologias rivais. Todos os problemas que a Igreja enfrentou, ou virá
ainda a enfrentar, têm em princípio a sua resolução nas Escrituras. É porque a
Bíblia, apesar de ser um livro humano, que fala de pecado e do erro e em muitos
lugares da fraqueza dos seus autores, não deixa de ser, acima de tudo, uma obra
divina, cujo autor primário é Deus.
Como prová-lo? Primeiramente pelo testemunho de Cristo e em
seguida pelo testemunho de Espírito; sendo o primeiro uma prova externa,
enquanto o segundo poderemos considerá-lo como uma prova interna.
Examinemo-los:
1. O
TESTEMUNHO DE CRISTO-Em primeiro lugar a autoridade de Cristo considera o Velho
Testamento como inspirado por Deus. Trata-se dum testemunho firme e categórico,
pois para Cristo a "Escritura" é uma unidade (cfr. #Jo
10.35), cuja autoridade, permanente e absoluta, supõe uma origem divina
(cfr. #Mt 5.17-20; #Lc 16.17; #Mt 19.4-6). Os argumentos da Escritura são duma força extraordinária (#Mt
22.32,41 e segs.; #Jo 10.34,35). Quem não se apercebe da ênfase com que Cristo pronunciou aquele
"está escrito"? Por isso todo o Seu ministério foi um testemunho
contínuo a confirmar a autoridade divina do Velho Testamento, pregando e
morrendo em obediência ao que estava escrito (cfr. #Mt
8.16,17; #Mt 26.24,54; #Lc 4.18-21; #Lc 18.31-33; #Lc 22.37). O Mestre, a quem a Igreja se submete, em tudo Se sujeitou à
Palavra do Pai expressa no Velho Testamento. São os apóstolos os primeiros a
confirmar tal testemunho (cfr. #2Tm 3.16; #2Pe
1.20-21; #Rm 3.2). Outros textos referem-se a palavras proferidas por Deus ou pelo
Espírito Santo (cfr. #Mt 19.4,5; #At 4.25,26; #At 13.34-35; #Hb 1.6; #Hb 3.7).
Em segundo lugar a autoridade de Cristo supõe que o Novo
Testamento tem o mesmo caráter do Velho. Jesus ensinou os discípulos a ler o
Velho Testamento "cristologicamente", isto é, a considerá-lo como uma
revelação profética de acontecimentos relativos a Si próprio (#Lc
24.24,25,44-45; #Jo 5.39,46). Os apóstolos assim procederam (cfr. #At
3.18,24; #1Pe 1.10-12), admitindo-o como se fosse escrito em primeiro lugar para
beneficio dos crentes (cfr. #Rm 4.23,24; #Rm
15.4; #1Co 9.10; #1Co 10.11; #2Tm 3.16), ainda que só o poderiam vir a compreender os que o lessem à luz
de Cristo (#2Co 3.14-16).
Ora, visto que Deus escrevera as Suas revelações proféticas para
que pudessem ser continuamente acessíveis e duma forma inviolável para
benefício, não só de Israel, mas também da Igreja Universal, preparou-as com
tal sabedoria, que nada mais se poderia esperar senão o Novo Testamento para as
cumprir. Há, no entanto, algumas considerações a fazer a este respeito. Em
primeiro lugar, Cristo prometeu o Espírito aos apóstolos para que recordassem e
compreendessem aquilo que já lhes ensinara (#Jo 14.25,26), e
bem assim recebessem novas revelações, que Lhe diziam respeito, mas que eles
ainda não podiam "suportar" (#Jo 16.12-14).
Assim preparados, poderiam ser legítimos intérpretes do Mestre junto da Igreja,
em todos os tempos e em todas as partes do mundo (#Jo
17.20; #Mt 28.19). Qual teria sido, pois, a intenção de Cristo, senão a de lhes
impor a obrigação de deixarem por escrito esse testemunho que iriam perpetuar?
Em segundo lugar, os apóstolos afirmam que, sob o impulso do Espírito Santo,
ensinam e escrevem a verdade pura. É a inspiração verbal (#1Co
2.13), que só quem é "espiritual" pode compreender em toda a
sua extensão e profundidade (#1Co 14.37; G1 1.8; #2Ts
3.6,14). O que não se pode negar é que os apóstolos exigiam para as suas
obras uma autoridade tão categórica, como a que atribuíam ao Velho Testamento.
Em terceiro lugar, veja-se como Paulo cita Deuteronômio juntamente com Lucas, e
como Pedro se refere às epístolas paulinas, como parte integrante do Cânon das
Escrituras (#1Tm 5.18; #2Pe 3.16). Finalmente, diversos séculos de exegese cristã demonstraram
que, sob o ponto de vista teológico, os dois Testamentos formam uma unidade
orgânica, que se completam mutuamente num harmonioso testemunho a Cristo.
Concluindo, seja-nos lícito afirmar que, à luz da intenção
evidente de Cristo de escreverem os apóstolos os seus testemunhos, a autoridade
que eles para si e para os outros reclamam, levam-nos, sem dúvida a admitir,
que o Novo Testamento veio completar o Velho.
2. O
TESTEMUNHO DO ESPÍRITO-Se é pelo uso da faculdade da fé que distinguimos a
Palavra de Deus por aquilo que ela é, deve ser também a fé que vê a natureza
real daquilo que contempla. Assim o interpretou a Igreja através dos tempos. Já
que é o Espírito que infunde a fé, operando no íntimo dos crentes, a presença
desta convicção é o que se chama o testemunho do Espírito.
A Bíblia é, pois, a Palavra de Deus revelada aos homens, enquanto
nessas páginas Deus manifesta as Suas intenções relativas aos planos que traçou
para salvação do Seu Povo. Chamar à Bíblia uma narrativa ou um testemunho é
pouco, porque é muito mais. É uma narrativa, sim, não só daquilo que Deus
disse, mas também daquilo que Deus ainda diz presentemente. É um elo na cadeia
da ação redentora de Deus. O seu conteúdo, lido ou ouvido, é o meio pelo qual
os pecadores chegam ao conhecimento do Pai e do Filho, baseados no ministério histórico
de Cristo, que ele lembra e explica, e através da ação regeneradora do
Espírito, que opera com a Palavra. Não é, todavia, a Palavra de Deus, no
sentido em que cada frase separada, incluindo as palavras proferidas pelos
perversos, exprime a intenção de Deus ou reflita a Sua divina vontade. A Bíblia
é a "Palavra de Deus Escrita", mas considerada no seu todo, ou, com
mais precisão, a teologia da Bíblia é uma unidade orgânica, que os nossos
antepassados tão sugestivamente denominaram "corpo da divindade".
Aqui se encontra a imagem da mente Divina, a transcrição dos Seus pensamentos,
a declaração da Sua graça, a personificação verbal de todos os tesouros de
ciência e sabedoria ocultos no Seu divino Filho. Aqui assenta toda a nossa fé.
II. A
INSPIRAÇÃO
a) O
significado da inspiração
A palavra inspiração, não sendo bíblica, significa, normalmente,
uma influência sobrenatural do Espírito de Deus sobre os autores bíblicos,
garantindo que, aquilo que escreveram era precisamente o que Deus pretendia que
eles escrevessem para a transmissão da verdade divina, podendo, por isso,
dizer-se realmente "inspirados" ou theopneustos, literalmente, "soprados por Deus" (#2Tm
3.16). Como já não é novo para nós este assunto, limitar-nos-emos
agora a corrigir alguns equívocos.
A "inspiração" que garante a comunicação infalível da
verdade revelada é bem distinta da "inspiração" do artista criador.
Nada de confusões. A inspiração não só não implica estado anormal do espírito
do escritor, -por exemplo, visões ou audição de vozes estranhas, -como não
supõe, também, a aniquilação da sua personalidade. Deus providencialmente
preparou os meios humanos de inspiração para que os escritores pudessem cumprir
a sua tarefa; e, na maior parte dos casos, apenas através das faculdades normais.
Muitos estados de espírito são na realidade compatíveis com a inspiração. Não é
necessário supor-se que os autores tinham sempre a consciência de que estavam a
ser inspirados, quer dizer, que sabiam estar a escrever as Escrituras
Canônicas. Nem há razão para afirmar-se que um documento inspirado não possa,
na providência divina, ter sido compilado ou extraído de fontes por um processo
vulgar de composição histórica, passando por várias edições até atingir a sua
forma definitiva. O que deve admitir-se é que no fim de contas a obra foi theopneustos,
e que através dela Deus
quis comunicar aos homens a Sua graça salvadora. Sendo assim, só podemos
admitir a inspiração verbal. E se as palavras da Escritura são inspiradas por
Deus, é quase uma blasfêmia não admitir a infalibilidade da sua doutrina, e a
ausência de erro nessas palavras. São prerrogativas que não podemos aprovar, ou
desaprovar, através da argumentação vulgar; porque as consideramos artigos de
fé, baseadas que são na doutrina de Cristo e no testemunho do Espírito a
confirmarem que as Escrituras Canônicas foram inspiradas por um Deus que não
pode mentir. Quem as nega rejeita o testemunho de Cristo, dos apóstolos e da
própria Igreja Cristã relativo à natureza da "Palavra de Deus" escrita,
e com certeza não possui nem compreende o testemunho interno do Espírito
Santo.
b) O
problema da inspiração
Nenhuma doutrina cristã está isenta de problemas, e isto porque
Deus quis que a Sua verdade fosse um objeto de fé. Ora, o fundamento da fé é o
testemunho e a autoridade do próprio Deus; donde se segue que são coisas
distintas o acreditar numa autoridade e o acreditar em face duma demonstração
racional. O pecado original do homem foi um desejo de evidenciar a sua
sabedoria auto-suficiente, uma vontade de não admitir qualquer autoridade
externa, capaz de agir por si própria (cfr. #Gn 3.5,6); e
Deus deliberadamente apresenta a verdade salvadora aos pecadores e de tal forma
que, ao aceitá-la, supõe-se um ato de arrependimento intelectual de sujeição à
doutrina de Deus. Daí a renúncia à própria sabedoria (cfr. #Rm
1.22; #1Co 1.19-25) a fim de que só possa sobressair aquela outra sabedoria, que é
apanágio dos que ouvem a Palavra do Senhor. Para ser mais completa essa
renúncia, Deus determinou, ou melhor, garantiu, que nem um só artigo de fé
pudesse ser demonstrado, tal como qualquer teorema geométrico. O homem deve
contentar-se com o conhecimento que adquire pela fé, conhecimento esse que, no
fim de contas, jamais poderá atingir a perfeição neste mundo. Não conseguiremos,
pois, eximir de dificuldades a doutrina da Inspiração Bíblica, tal como sucede
com a doutrina da Trindade ou da Encarnação. Nem esperemos neste mundo resolver
todos os problemas. Não é de admirar, portanto, que muitos cristãos caiam na
heresia, a respeito desta ou doutras doutrinas. Convém, no entanto, indicar
qual a atitude a tomar perante os erros que se nos apresentem.
Em primeiro lugar, esta doutrina não raro é amesquinhada por
aqueles que dizem professá-la, e afirmam que a Bíblia é produto da inspiração
em certo sentido, mas nunca inspiração verbal. Deus inspirou ou revelou a
verdade aos escritores, que sendo criaturas falíveis e pecaminosas, poderiam
falsificá-la. Por isso, é possível admitirmos erros nas Escrituras. Mas não foi
assim, como vimos, o pensar de Cristo e dos apóstolos. É errado o pensamento de
que nem todos os livros da Bíblia estão ao mesmo nível de profundidade
espiritual e finalidade de doutrina; mas, na Sua providência soberana, podia
Deus preparar e dirigir os instrumentos humanos apenas para escreverem
precisamente aquilo que entendesse, nem mais nem menos. Por outras palavras,
segundo esta teoria, a Bíblia não é aquilo que Deus pretendia, nem aquilo que
Cristo pensava e ensinava. É evidente que tal teoria é inadmissível.
Em segundo lugar, rejeita-se por vezes a nossa doutrina,
recorrendo-se a pretensos argumentos internos da Bíblia. Tais objeções,
todavia, supõem fundamentalmente uma idéia humana a
priori daquilo que provavelmente será a Bíblia inspirada. E, só o fato
de as apresentar como argumentos válidos para duvidar do que Deus afirma desse
livro, é já um sinal de impenitência intelectual, inconsciente talvez, mas não
menos real por isso. O melhor é, na realidade, começar por aceitar o testemunho
de Deus sobre a inspiração verbal, e só depois examinar os argumentos internos
da Escritura para se chegar à conclusão da probabilidade da inspiração verbal.
Por mais rigoroso e profundo que seja o exame, verificar-se-á que a inspiração
se adapta perfeitamente a todas as formas do pensamento, a todos os métodos
literários, a todas as figuras estilísticas e a todas as características
vocabulares dos escritores. Estes são os canais condutores da verdade
inspirada. Desconhecê-los, pode ser um perigo, pois é possível não se conhecer
a intenção de Deus, e nesse caso descobrir erros onde na realidade não existem.
Ao estudar-se a Bíblia, deve seguir-se o princípio, baseado na fé, de que a
Escritura, em parte alguma é capaz de adulterar a verdade, sendo inspirada para
no-la transmitir, e de que todos os acontecimentos bíblicos têm um significado
que só a Igreja pode conhecer perfeitamente. Neste caso, é conveniente apreciar
o texto a analisar à luz do contexto bíblico da Escritura, considerada no seu
todo. Trata-se dum princípio de importância fundamental para a interpretação
bíblica, que nunca se deve perder de vista, mesmo no meio das dificuldades que
possam surgir a este respeito. Vamos citar aqui um exemplo apenas.
Várias vezes se diz que certas atitudes, ações e reflexões
teológicas são uma refutação da doutrina duma Escritura inspirada. É uma
objeção que só revela incompreensão da natureza da Bíblia. Já frisamos que a
Bíblia é mais do que um simples amontoado de textos separados; é um organismo,
um conjunto homogêneo, cujas partes não se podem explicar isoladamente. Ora,
Deus recolheu diferentes materiais para a Sua obra; por isso não admira, que
muitos dos exemplos apontados sejam maus. É que tudo serve para nossa
instrução, embora tais exemplos possam ser interpretados de diferentes modos.
Fala-se em erros teológicos e práticos, supondo-se que pelo fato de aparecerem
na Bíblia têm a aprovação de Deus. Os princípios da teologia bíblica devem
interpretar os fatos da história e da biografia bíblicas, uma vez que estes
também explicam aquela. A Escritura interpreta-se com o auxílio da mesma
Escritura. Já se disse que a Bíblia constitui uma unidade orgânica, que a
Palavra de Deus é um todo, e que cada texto deve ser compreendido à luz da
verdade que se encontra em Jesus.
Impossível aqui apresentar mais argumentos a favor da nossa tese.
Limitar-nos-emos a afirmar, em conclusão, que a atitude da fé para com a
doutrina da inspiração bíblica, bem como para com outras doutrinas, é a de
aceitar única e simplesmente o testemunho de Deus. Nada, por isso, poderá
abalar a nossa fé, já que nada pode abalar o testemunho em que se apóia. Quando
tiver de enfrentar as dificuldades e as objeções, que implicam com a sua fé, o
crente deve lembrar-se mais da sua possibilidade de falhar do que da infalibilidade
do testemunho de Deus, ao apresentar-nos a verdade. Recorra-se, nesse caso, a
uma cuidadosa retrospecção à luz dum estudo mais profundo e mais eficaz da
evidência bíblica. Foi assim que se fizeram progressos doutrinários através da
história da Igreja. Será assim que também nos nossos dias se conseguirá uma
compreensão mais fiel e mais perfeita da doutrina da inspiração da Bíblia,
aceitando-a como a Palavra de Deus, isenta de erro e infalível.
J. I.
PACKER
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