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segunda-feira, 13 de junho de 2016

Justiça Social na Bíblia



O conceito da justiça aparece cedo na vida da criança e na história da humanidade. Crianças novas questionam a parcialidade que um pai ou mãe pratica. João Carlos Ortiz usou a ilustração dos seus filhos, num encontro de pastores em Recife. Quando os pais convidaram hóspedes para um jantar, eles serviram Coca Cola. Antes de sentar a mesa um dos filhos menores começou a se queixar amargamente que ele foi injustiçado, porque o copo dele tinha menos refrigerante do que os irmãos.

Justiça é um tema frequente na Bíblia e infinitamente mais importante do que ter mais ou menos Coca Cola num copo. A palavra diakaiosune é formada do conceito de dikaioo (justificar) e dikaios (justo) e palavras correlatas, dike (penalidade em 2 Ts 1.9) e diakaiosis (em Rm 4.25 e 5.18 “justificação ou absolvição). Esta família de palavras nos ajuda entender que “justiça social” significa agir de modo justo ou reto.  No hebraico a palavra tsadhak (justificar), tseddik (justo) e tsedek ou tsedhakah (retidão ou justificação) é a principal fonte deste conceito no Novo Testamento (cf. D.E.H. Whiteley,The Theology of St. Paul, Philadelphia, 1964, p. 157).  Praticar justiça seria praticar boas obras do modo que Jesus ordenou: “Assim brilhe a luz de você diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus” (Mt 5.16). Paulo faz eco deste conceito de Jesus dizendo: “Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nos praticarmos” (Ef 2.10).

Neste mundo caído, a necessidade da prática de justiça se tornou prioritária.

Disse um judeu, Chaim Perelman o seguinte: “Justiça é... uma das noções mais altamente respeitadas em nosso universo espiritual. Todos os homens – cristãos, religiosos e incrédulos, tradicionalistas e revolucionários – invocam a justiça e nenhum deles ousa contradizê-la. A busca da justiça inspira as admoestações dos profetas hebreus e as reflexões dos filósofos gregos. Ela é invocada para proteger a ordem estabelecida, assim como para justificar a sua derrubada..., um valor universal” (cit. R. Shedd, Justiça Social e a Interpretação da Bíblia, S. Paulo, ed. Revisada, 2013, p.10). Se, então, justiça é um valor universal, como devemos explicar a injustiça nas indescritíveis e horríveis atrocidades praticadas pelos alemães sob o comando da Adolf Hitler e as chacinas promovidas pelos socialistas na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas? 

Acredito que pelo fato de que Deus foi misericordioso conosco, e nós fomos recriados na imagem de seu Filho, cai sobre nós a responsabilidade de mostrar misericórdia para com os necessitados. Esta conclusão é reforçada pela parábola que o Senhor contou dos dois servos endividados. O primeiro devia uma quantia de dez mil talentos, uma dívida do tamanho do Oceano Pacífico. O servo não tinha com que pagar, o mestre credor o perdoou. Outro servo dele tinha uma dívida de um valor em torno de R$ 500,00. Este pediu que o seu credor o tratasse com paciência, dando-lhe tempo para pagar, mas recusou. O resultado foi que o servo com a dívida de tamanho astronômico foi cobrado por seu credor, e forçado pelos torturadores a pagar tudo que devia (Mt 18.23-35). Ainda que esta parábola fosse contada por Jesus no contexto da pergunta de Pedro sobre a obrigação de perdoar as ofensas, sua aplicação bem pode tratar da área de justiça social. Na essência, justiça social trata de misericórdia e não da penalidade de nosso merecimento.

Qualquer aplicação de um texto que seja legítimo faz parte da responsabilidade de interpretar o texto coerentemente, de maneira que não ofereçamos algum significado que o próprio texto não admite. A parábola do servo impiedoso trata de dívidas e não especificamente de “justiça social”. Portanto a pergunta que devemos levantar seria questionar se cristãos têm alguma dívida para com a sociedade em geral, além de suas obrigações relativas à família de Deus. Se a resposta for “sim”, então logo surge a pergunta: “Quais são os limites dessa dívida”? Paulo não menciona a dívida que ele tem com os coríntios, de onde escrevia sua famosa carta aos romanos. Certamente houve muita gente vivendo na miséria em Corinto. Mas, ele reconhece sua dívida. A dívida dele era tanto “a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes. Por isso estou disposto a pregar o evangelho também a vocês que estão em Roma” (Rm 1.14,15). 

Acredito que Paulo teria dito em resposta a esta pergunta que a pregação do evangelho é a melhor obra, o mais alto nível de amor que podemos mostrar para os perdidos. A pregação da informação que daria aos condenados à miséria eterna teria prioridade sobre qualquer responsabilidade social. Com uma facilidade incrível as igrejas do primeiro mundo do século 19 se dividiram sobre esta questão. Os de inclinação mais liberal decidiram que o mundo precisava ser melhorado. Precisava de justiça social. O movimento marxista ofereceu a solução materialista. Seria apenas necessário instalar o sistema em que os trabalhadores ganhem todo o benefício do seu trabalho e não dar aos donos das indústrias e terras o direito de tirar seu lucro injusto. 

Os evangélicos discordaram, concluindo que nenhum sistema de redistribuição da renda da produção poderia compensar a vida eterna. O resultado foi, então, que o movimento missionário enviou milhares de missionários do primeiro mundo para o terceiro. Em grande parte a preocupação com os condenados perante Deus (Jo 3.36) estavam no terceiro mundo. As igrejas se dedicaram à tarefa inacabada no mundo da América Latina, da Ásia e da África. A decisão de dar atenção à Bíblia em detrimento da ação social surgiu da maneira que interpretaram a Bíblia. Os evangélicos entenderam que o problema maior era a distância de Deus em que o homem perdido vivia que, consequentemente, o condenaria ao inferno. Isto seria muito mais sério do que os problemas sociais, tais como a fome, a opressão de governos totalitários ou a falta de emprego. Os evangélicos entenderam que a transformação de vidas submetidas a Deus pela fé mudaria as condições de injustiça que dominava os países incrédulos. Baseados nas mudanças profundas que a Reforma trouxe para Europa Ocidental e a América do Norte, concluíram que os melhoramentos que o mundo precisava estavam embutidos no próprio evangelho. Se a maioria dos homens se convertesse, e obedecessem à Bíblia, o resultado seria a diminuição dos males do mundo.

O teólogo C. F. H. Henry chamou a atenção para o “estreitamento da mensagem evangélica, limitando-a a transformação do indivíduo, e o consequente fracasso em opor-se aos males sociais” (The uneasy Conscience of Modern Fundamentalism, Grand Rapids, 1947, pp.23-26). Os teólogos latinos, tais como René Padilla, Samuel Escobar, Orlando Costas e muitos outros, também aceitaram a posição de críticos. Perceberam que o evangelho proclamado pelos missionários anglo-saxões no Terceiro Mundo era incompleto, omitindo o ensino sobre a fundamental preocupação do Reino de Deus com a justiça.

Os liberais pensaram diferentemente. Baseado na crença que todos os homens já são “filhos de Deus”, a evangelização era desnecessária. 

O evangelho social com as boas obras praticadas alcançaria um mundo mais justo, mas pacífico e mais próximo daquilo que a Bíblia chama de Reino de Deus. O evangelho social promoveu esta interpretação da Bíblia, de que o Reino seria uma sociedade pacífica, integrada racialmente, e abundante em termos de suprimento de alimentos, roupas e educação.

Paul Tillich foi a Edinburgh, quando eu estudava lá, para proferir uma palestra em que ele mostrou as implicações duma revelação, não de Deus, criador dos céus e da terra, mas de um Deus que se identificou com “o fundamento do ser”, o que mais lhe preocupa, um sentimento de dependência. As boas novas consistem em que você é aceito, por quem ou por que permanecendo um mistério. Se os milagres são uma invenção dos autores da Bíblia, como ensinava o famoso professor de Novo Testamento de Marburg, R. Bultmann, a autoridade da Bíblia evapora-se. Um incentivo para as boas obras teria que emanar de um espírito humanista.

O liberalismo também penetrou a Igreja Católica como podemos perceber no comentário de Walter Bulhmann, secretário de Missões Católicas em Roma, e da Freira Emanuelle do Cairo no Egito. 

Bulhmann disse: “No passado, o incentivo em ganhar almas dominava a missão da Igreja. Estávamos convencidos de que os não batizados iriam em massa para o inferno. Agora, graças a Deus, cremos que todos e todas as religiões, já estão vivendo na graça e amor de Deus e serão salvos pela misericórdia de Deus”.

Freira Emanuelle do Cairo, Egito: “Hoje não falamos mais de conversão. Falamos de amizade, fazer amigos. Minha tarefa é provar que Deus é amor e trazer coragem a esta gente”.

Uma vez adotada uma posição como esta, o incentivo para enviar missionários para converter os incrédulos desaparece, enquanto se mantém um renovado interesse em ação social. Que outra justificativa existe para manter a entrada de recursos e um compromisso dos jovens que não têm interesses puramente materialistas no centro de suas ambições.

J.C. Ryle expõe o pensamento geral evangélico: “Enquanto o Diabo for o príncipe do mundo e muitos corações não se converterem, haverá conflitos e luta... Não devemos esperar que os missionários e ministros venham a converter o mundo e ensinar toda a humanidade a amar uns aos outros. Eles absolutamente não farão isso. Não é essa incumbência deles. Eles conclamarão as pessoas a testemunharem de Cristo e a servi-lo em toda a Terra; não farão nada além disso” (cit. Justiça Social e a Interpretação..., p. 16 n.15). Seria difícil chegar a outra posição se de fato acreditamos que o perdido não crente de fato sofrerá a eterna desgraça, sem Deus e sem esperança na vida vindoura. 

Por isso, os evangélicos, com razão entendem que Deus em sua Palavra os convoca para ir e fazer discípulos de todas as nações, ensinando-as a obedecer tudo que Jesus ensinou. O cerne do que Jesus ensinou foi que a vida vale infinitamente mais do que o mundo que a riqueza desfruta: “Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma” (Mc 8.36). 

Há duas razões principais para se envolver em boas ações em favor de mundanos: 

1) Nós sabemos na Bíblia que Deus é amor, que ele mandou seu Filho para salvar o mundo por causa do amor que ele tem pela humanidade (Jo 3.16; 1Jo 4.8). Sentir-se indiferente diante da miséria, da depravação, da opressão que os não cristãos sofrem deve ser um crime, tal como o bombeiro que olhasse o Edifício Andraus, próximo ao centro de São Paulo, enquanto estava em chamas, e dissesse para si mesmo: “Não há nada que posso fazer. Os jatos de água são fracos demais para atingir as chamas!” Timothy Keller, em seu livro Justiça generosa (Vida Nova, 2013) argumenta fortemente contra esta desculpa e toda tentativa de não se envolver com as múltiplas necessidades do mundo.

2) Boas obras são ordenadas por Deus (veja a parábola do Bom Samaritano). Boas obras são usadas por Deus para persuadir pecadores a se arrependerem e glorificar a Deus (Mt 5.16). Como os milagres de Jesus durante sua vida terrestre, ainda que não fossem capazes de salvar os espectadores, levaram alguns dos beneficiados a buscar mais do que a cura do corpo (veja os casos em João do homem paralítico esperando 38 anos o mover das águas para ser curado (Jo 5.14,15) e o cego desde nascença em João 9. Os dois beneficiados foram persuadidos que Jesus era o salvador.

Dr. Polley, cirurgião renomado do estado de Nova Iorque, se deslocava para lugares remotos na África para realizar cirurgias, mas principalmente para divulgar o evangelho.

3) Se todos os homens foram criados à imagem de Deus, e ele manda que amemos uns aos outros como se amamos a nós mesmos (Lv 19.18; Mt 22.39; Lc 10.27, etc.). Embutido no conceito do amor está a obrigação de procurar aliviar o sofrimento dos que vivem oprimidos pelas incontáveis injustiças que assolam a humanidade. O pecado universal dos homens não mudou esta obrigação. Este mandamento se encontra repetidas vezes na Palavra, no Antigo e no Novo Testamento.

Alexander Solzenitsyn mostrou no seu livro sobre o Gulag que um sistema idealista não é incentivo suficiente para garantir justiça na sociedade. Isso foi demonstrado amplamente em sociedades comunistas, mais recentemente na Coréia do Norte, onde milhares de presos sofrem as mais horríveis indignidades em campos de concentração pelo simples crime de serem cristãos.

A Lei dos israelitas no período pós-mosaico visava uma sociedade justa. Pode-se ver a discussão no capítulo 2 de meu livro, Justiça Social e a interpretação da Bíblia. Moisés falou em Deuteronômio 4: “Eu lhes ensinei decretos e leis, como me ordenou o Senhor, o meu Deus, para que sejam cumpridas na terra na qual vocês estão entrando para dela tomar posse. Vocês devem obedecer-lhes e cumpri-los, pois assim os outros povos verão a sabedoria e o discernimento de vocês. Quando eles ouvisse todos estes decretos dirão ‘ De fato esta grande nação é um povo sábio e inteligente’. Pois, que grande nação tem decretos e preceitos tão justos como esta lei que estou apresentando a vocês hoje?” (4.5-8). O propósito de Deus na entrega das leis e decretos relacionados com a justiça social para seu povo foi para que as nações tomassem nota da importância de buscar ao Deus de Israel e se comprometer com suas leis. Estava diretamente ligada a missão de Israel.

No Novo Testamento também, a prática das boas obras seria uma porta para levar as nações incrédulas a se interessar em observar os benefícios evidentes de reconhecer o senhorio de Cristo e de viver debaixo do seu reinado.
  

CONCLUSÕES:
1)   A Palavra condena o amor ao dinheiro. A idolatria que serve o deus Mamom é incompatível com o senhorio de Cristo. 
2)   A justiça social não implica a necessidade de se ficar pobre para ser abençoado e ser salvo, mas implica que temos a oportunidade de suprir as necessidades dos irmãos que nada têm ou passam fome e frio (cf. Atos 2.42-47).
3)   As boas obras do cristão têm o propósito de chamar a atenção dos perdidos para eles também se tornarem felizes na segurança que o Pai celeste dá para seus filhos.
4)   Os cristãos são cidadãos do céu, portanto sua peregrinação na terra é temporária, um vestibular para se prepararem para viver eternamente na presença de Deus, e menosprezar os valores principais deste mundo secularizado.
5)    A prioridade máxima do cristão é semear o evangelho, não melhorar a vida dos que não têm interesse algum no Deus único e no caminho da salvação.
6)    Mostrar a realidade do amor de Deus por ações de generosidade deve caracterizar a vida do cristão. Compare o que aconteceu em Jerusalém: “Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (At 2.45-47).
7)   A justiça social foca principalmente os filhos de Deus. Primeiramente, suprir as necessidades da família nuclear, depois da família de Deus e, finalmente, os de fora. “Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10).

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