INTRODUÇÃO
Diz-se que a história do mundo é a
história dos grandes homens. Algo da história do mundo encontraremos, pois, na
história de Josué, precisamente no livro que tem o seu nome: "Livro de
Josué". Começando pela vocação divina e pela missão que lhe foi confiada,
acaba o livro por descrever a morte do grande chefe, cujo nome anda ligado à
conquista de Canaã na história do famoso povo de Israel.
I. QUEM ERA JOSUÉ
Vários fatores guindaram Josué à chefia
do povo escolhido do Senhor. Era descendente da família de José, tão
prestigiada na história de Israel. O seu avó Elisama fora orientador da tribo
de Efraim através do deserto e talvez encarregado do corpo embalsamado do seu
antecessor, para condignamente ser sepultado na Terra da Promissão. O contacto
que teve com a civilização e a cultura egípcias (já que no Egito nascera e
tomara parte no êxodo: #Nm 32.11 e
segs.), preparou-o, como aliás a Moisés, para a grande missão de dar a
estrutura e a independência a um novo país. É de frisar como numa das suas
últimas proclamações ao povo, lhe lembrou que os seus antepassados prestaram
culto a outros deuses no Egito (#Js 24.14). Como auxiliar principal e adjunto de Moisés, em íntimo contacto com
ele no cargo de orientador do povo, Josué estava naturalmente indicado como
sucessor daquele de quem tanto recebera e com quem tanto aprendera na dura
travessia do deserto.
Perante as informações de Calebe,
mostrou-se corajoso e homem de fé excepcional, desprezando o relatório
apresentado pelos outros dez espias. Confiança no Senhor, acima de tudo.
Já em Refidim mostrara as suas
qualidades invulgares de militar, chefiando as tropas israelitas que repeliram
um repentino ataque dos amalequitas, desencadeando contra a retaguarda dos
hebreus, composta quase exclusivamente por mulheres, crianças e bagagem (#Dt 25.18). Levou-os de vencida Josué e, talvez
como recompensa, serviu-se o Senhor da sua intervenção para responder às
suplicas de Moisés no alto do monte (#Êx 17.8 segs.).
Eis a largos traços o homem, de cujos
dotes naturais, educação e experiência Deus se serviu para chefiar um grande
povo e introduzi-lo na Palestina. De nada lhe serviriam, porém, tais
qualidades, se a força dinâmica de que dispunha não revelasse a presença de
Deus. Foi na realidade ao chamamento do Senhor que brotaram quase em tropel as
suas poderosas energias, que haviam de conduzir à soberania de Israel um homem
escolhido por Deus. Enfim, estamos em presença dum soldado que se revestiu da
completa armadura do Senhor.
II. AUTOR E AUTENTICIDADE DO LIVRO
É de importância extraordinária o lugar
atribuído a Josué no Cânon hebraico. A princípio colocavam-no no grupo de
livros chamado "Os primitivos profetas", que incluíram Josué, Juízes,
Samuel e Reis. Se na opinião da crítica moderna, a Josué e ao Pentateuco se
atribui uma data posterior, admitindo-se serem compilados de numerosos
documentos de diferentes datas, já num período muito avançado da história
judaica, é de qualquer modo para admirar que o antigo Cânon hebraico
considerasse Josué como o primeiro daquele grupo. Por outras palavras, a teoria
dos documentos quase exige a substituição do Pentateuco pelo Hexateuco, solução
adotada pela crítica, mas que não corresponde ao antigo Cânon. De resto, não é
fácil compreender-se como é que os mesmos editores se entregaram, numa data
posterior, à tarefa de compilar não só o Pentateuco, mas também Josué.
Mas é curioso observar que muitos
críticos modernos não fazem qualquer alusão ao Hexateuco. Ainda que as fontes
fossem as mesmas em Josué e no Pentateuco, haveria, no entanto, a distinguir
documentos diferentes: o D para Josué e o P para o Pentateuco. Nunca, todavia,
qualquer motivo para a separação do antigo Cânon, pois a crítica moderna
distingue as mesmas fontes em Josué e no Pentateuco.
Em segundo lugar, a Arqueologia é mais
favorável a Josué e à conquista de Canaã do que propriamente ao Pentateuco.
Seja como for, sobre um e outro vem trazer luz as recentes escavações,
nomeadamente a comprovar a autenticidade das descrições históricas.
"Graças a investigações arqueológicas em muitas localidades
bíblicas", escreve o famoso arqueólogo Albright no seu livro Archaeology of Palestine, pág. 229, "é
possível estabelecerem-se a época e o significado histórico de muitas listas de
cidades bíblicas. Sirva de exemplo o caso da lista de cidades dos levitas em #Js 21 e #1Cr 6, que o crítico Wellhausen, considerou produto artificial da imaginação
de algum copista do período que se seguiu ao exílio. Mas, à luz de fatos
comprovados pela Arqueologia, chega-se à conclusão de que a lista dessas
cidades é muito mais antiga: entre 975 e 950 A.C. e uma pré-história que
remonta à conquista". Outros comentadores, tal como G. E. Wright no livro The Study of the Bible Today and Tomorrow,
seguem esta mesma opinião extensiva a mais listas de cidades, e também às
fronteiras mencionadas em Js 15-19, admitindo-se que não há razão alguma para
se atribuir as listas daquelas cidades a escritores que viveram depois do
exílio.
Finalmente, nada há que obste a
recorrermos a muitos argumentos internos para defender a nossa tese. No dizer
do Reitor Douglas em "The Book of Joshua", a referência à
"grande Sidom" e à "forte Tiro" (#Js 11.8, 19.28-29) supõe que o autor dessas linhas viveu
na época em que Sidom era a principal cidade dos fenícios, mesmo superior a
Tiro, que só mais tarde se tornou sua rival. É o período em que uma ou várias
pedras começam a ser utilizadas como lembrança de qualquer acontecimento célebre
registado no local, onde essa ou essas pedras se encontravam. Assim sucedeu na
travessia do Jordão, na sepultura de Acã, e de outros reis, em Siquém (#Js 24.26), o altar (#Js 22.10,34), etc. A alusão que se faz à
distribuição das terras pelas diferentes tribos é exposta de tal modo que supõe
um autor contemporâneo. A mais completa descrição é a que se refere a Judá, a
tribo que primeiro se fixou e que provavelmente cumpriu melhor o seu dever, sob
a orientação do fiel e dedicado Calebe. Judá é, em princípio, apresentado como
uma grande possessão, tal como José. Depois é-nos contado como a possessão de
Simeão foi tirada de Judá; deduz-se que Dã foi tirado de ambas as casas fortes
(Judá e José).
Podemos, pois, concluir que, não
podendo determinar absolutamente o autor do livro, é evidente que as fontes
donde deriva eram contemporâneas dos acontecimentos descritos e, mais ainda,
que a forma atual do livro remonta a uma época muito recuada.
III. DATA DA CONQUISTA DE ISRAEL
Os fatores determinantes que nos levam
ao conhecimento da data em que Israel conquistou Canaã são dependentes, apenas
das investigações arqueológicas. Duas teorias surgem, baseadas nos textos
bíblicos e naquelas investigações, para solucionar o caso, se bem que nem todas
as dificuldades possam ser facilmente aplanadas.
Garante-nos o #Êx 1.11 que durante o exílio no Egito
construíram os israelitas para o Faraó "cidades de tesouros", tais
como Pitom e Ramessés. Ora, há quem afirme serem essas cidades fundadas por
Ramessés II (1300-1224 A.C.), o suposto Faraó da opressão, enquanto o seu
sucessor Meremptá governava na altura do Êxodo. Isto levaria a admitir-se a
entrada em Canaã cerca de 1230 A.C. (Para exame dos argumentos apresentados em
mais pormenor, deve consultar-se a "Introdução" ao livro de Juízes
neste comentário).
Mas sucedeu que em 1896 foi descoberta
uma inscrição de Meremptá (cerca de 1200 A.C.) aludindo a algumas das suas
conquistas e falando de tal modo em Israel, que nos leva a supor (ainda que não
haja unidade entre os eruditos) que os israelitas não se encontravam já no
Egito, mas, possivelmente, instalados na Palestina, numa comunidade organizada
e definitiva. Não obstante a oposição dalguns comentadores, outro tanto se pode
demonstrar duma inscrição de Ramessés II que dá a idéia de ser Aser uma tribo
da Palestina. Mas torna-se difícil, por outro lado, compreender que em tão
curto espaço de tempo já se tivesse conquistado a Terra e se tivessem fixado os
israelitas em Canaã tal como incluir o governo dos Juízes antes de se instaurar
a monarquia.
A identificação, portanto, de Pitom e
Ramessés com Ramessés II não é provável, ou pelo menos torna-se muito difícil.
Outra alternativa tem origem em #1Rs 6.1, onde se acentua que o Êxodo teve
lugar 480 anos antes de Salomão começar a construir o templo. Como esta data
foi fixada em 967 A.C., segue-se que os israelitas invadiram Canaã cerca do ano
1407 A.C..
Garstang, outro erudito, no livro
"Joshua-Judges", afirma que se pode confirmar esta teoria com referências
egípcias. Diz que dificilmente se daria a invasão de Canaã numa altura em que o
Egito a controlava, podendo defendê-la com o seu poderio. Sem entrar em
pormenores nos argumentos apresentados, há paralelos destacados entre a
história de Israel, tal como no-la recorda o livro de Juízes e os momentos de
prosperidade e decadência do Egito contemporâneo, talvez seja suficiente
afirmar que essa data deve coincidir com as cartas de Tell-el-Amarna (cerca de
1400 A.C.). Descobertas em 1887, chegou-se à conclusão de que essas cartas
continham a correspondência entre os oficiais egípcios na Palestina ou noutras
regiões e o governo central no Egito e frisavam o declínio da influência
egípcia em face do avanço do Império Hitita. Seria nesta ocasião de declínio do
Egito que provavelmente se deu a entrada de Israel em Canaã. Que esta se
registrasse cerca do ano 1400 A.C., dizem outros não ser plausível pelo fato de
não haver qualquer alusão à fundação das cidades de Pitom e Ramessés no séc.
XIII, precisamente no reinado de Ramessés II. Mas na realidade, foram essas
cidades fundadas pelos israelitas, embora mais tarde restauradas com o mesmo
nome em honra de Ramessés II, depois de terem os israelitas abandonado o Egito.
IV. O PROBLEMA MORAL NA GUERRA DE ISRAEL
O extermínio total dos cananeus,
registado no livro de Josué, surpreende bastante certos comentadores, que a
essa descrição bíblica não querem retirar a inspiração divina. Poderemos, com
efeito, acreditar nas ordens de Jeová para destruir completamente os habitantes
do país? Em caso afirmativo, estará esta revelação de acordo com a revelação
que Cristo nos fez do Pai?
Duas soluções apontam os críticos
modernos. Afirmam uns que a narração do extermínio dos cananeus foi escrita
muito depois dos acontecimentos, idealizando o que teria sucedido para que o
culto de Jeová se conservasse puro. Por outras palavras, as atrocidades
cometidas não se registraram realmente. Outros críticos então opinam que a
revelação de Deus, conservada na primitiva história religiosa de Israel, é a
revelação do próprio Jeová, limitada pela capacidade daqueles que a receberam e
que o fato de ordenar a destruição dos cananeus representa uma fase bastante
primitiva do desenvolvimento religioso.
Ao considerarmos a autoria e
autenticidade do livro de Josué, já apresentamos algumas razões que nos levam a
não admitir à primeira daquelas hipóteses. Quanto a segunda, há a considerar
que se supõe terem-se os israelitas enganado, quando pensaram que Jeová, o seu
Deus particular, naturalmente admitia a hipótese de poderem ser eliminados
todos os inimigos do Seu povo. Uma revelação posterior (do livro de Jonas, por
exemplo) devia mostrar como Deus não deixa de possuir entranhas de amor e
misericórdia para com as nações que não fazem parte da comunidade de Israel,
ultrapassando-se deste modo a revelação primitiva. É uma teoria, na realidade
aliciante, mas que não vem solucionar definitivamente o problema. Também é
certo que o conhecimento de Deus se foi aperfeiçoando cada vez mais entre o
povo e que, quando muito, o Velho Testamento apenas proporcionava uma parte da
revelação divina. Mas o que não podemos crer é que uma revelação posterior
venha contradizer uma outra já existente. Deus pode revelar-se
progressivamente, mas falo com toda a consistência, para que possamos admitir
essa revelação.
Será fácil, então, encontrar uma
explicação viável, que não desacredite a inspiração da narrativa nem o seu
Autor que a revelou? Antes de mais é necessário ter uma idéia clara do que pode
significar a devoção dos cananeus à destruição. Falando, por exemplo, dos
habitantes de Jericó, diz-se que a cidade e todos os seus habitantes foram
"dedicados" ou "amaldiçoados" (em hebraico: herem). Quer isto dizer que tudo aquilo que
pudesse comprometer a vida religiosa da comunidade devia ser afastado, para se
evitarem maiores males. O melhor e talvez único meio de o fazer era exterminar
isso por exemplo. Parece, pois, que o "anátema" ou
"extermínio" tinham uma finalidade religiosa e ao mesmo tempo
preventiva: defender o culto religioso e a vida dos israelitas. É neste sentido
que se deve procurar uma solução para o problema.
A destruição dos cananeus foi, então,
em princípio, um benefício de caráter religioso, conforme no-lo afirma
insistentemente o texto sagrado, sendo o povo israelita o instrumento pelo qual
Deus castigava os perversos habitantes da terra. Assim como destruíra Sodoma e
Gomorra pela mesma espécie de corrupção sem necessidade de recorrer a
instrumentos humanos, agora se serviu dos israelitas para punir e desarraigar
severamente a depravação cancerosa dos cananeus. Se na realidade o mundo é
governado por uma superior lei moral, não podemos deixar de admitir que a
justiça se cumpra, quando necessária.
Note-se ainda que o extermínio, como
necessidade religiosa, impunha restrições morais (roubo, despojos), que seriam
de admitir noutros casos. Não era o prazer do sangue e da chacina; apenas uma
ordem divina a cumprir.
Falemos agora da segunda finalidade do
extermínio, de caráter preventivo. Se a religião dos hebreus devia conservar-se
pura e imaculada, toda e qualquer possibilidade de impureza tinha de ser
afastada. Como? Só com medidas drásticas. Mas se os hebreus tinham por missão
transmitir ao mundo a Revelação divina, como explicar essa atitude perante os
outros povos? E se Israel também transgrediu, por que não sofreu idêntico
castigo? Uma coisa é certa: Para que Deus pudesse manter o Seu governo moral e
para que Israel transmitisse a mensagem divina ao mundo, convinha que se
eliminassem os povos contrários a essa mensagem.
V. A DOUTRINA RELIGIOSA DO LIVRO
O valor religioso de qualquer livro
mede-se pelas respostas: que nos diz a respeito de Deus este livro? Que verdade
divina nos vem anunciar? Três aspectos pelo menos das relações de Deus com o
homem. Vejamo-los:
a) A fidelidade de Deus
Já há muito se falava na promessa feita
a Israel de que um dia viria a ser senhor da Terra Prometida. Mas o homem
desobedecera e pecara. Iria porventura ser privado daquele privilégio? Não. Os
planos de Deus são infalíveis. E a promessa cumpriu-se. Como? percorramos as
páginas do livro de Josué.
b) A santidade de Deus
Podemos admirá-la no castigo infligido
aos primitivos habitantes da terra. A iniqüidade dos amorreus atingira o ponto
culminante e Israel foi escolhido para castigar os seus crimes. Mas a santidade
de Deus exige que seja santo também o Seu instrumento. A guerra é também santa,
pois só pretende salvaguardar a santidade do instrumento e, no fim de contas,
honrar a santidade da mão que o orienta.
c) A salvação de Deus
A palavra Josué significa "Jeová é
a salvação" e é a forma hebraica de Jesus, o nome que está acima de todos
os nomes. Será de surpreender que Josué tenha sido uma "figura" ou um
"símbolo" de Cristo? Por certo que não! E o livro não simbolizará
também a nossa vitória em Cristo? A travessia do Jordão era a morte; mas, para
além dele, raiava uma aurora de plenitude, de felicidade e de bênção, que
também a nós está prometida. "Temamos, pois, que porventura, deixada a
promessa de entrar no Seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás"
(#Hb 4.1).
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