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sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Bíblia como ferramenta missionária


 No final de junho dei uma palestra em São Paulo por ocasião do VIII Fórum de Ciências Bíblicas, promovido pela Sociedade Bíblica do Brasil. O tema do fórum era “a relação entre missões e a Bíblia”. A minha contribuição foi em duas partes. Na primeira delas, considerei como podemos melhor correlacionar “missões” ou “missão” com a Bíblia. Era uma reflexão mais teológica e hermenêutica. Na segunda parte da palestra, considerei a Bíblia como ferramenta na expansão missionária do povo de Deus. Uma reflexão mais histórica. A partir de agora, falarei desta segunda parte da reflexão, uma vez que a primeira foi apresentada no mês passado.

Por esse motivo, consideremos a Bíblia em dois aspectos. Primeiro: a Bíblia como ferramenta nopreparo missionário. Segundo: a Bíblia como ferramenta na prática missionária.

A Bíblia como texto no preparo missionário (ou o estudo de missões)
 
No Brasil e fora dele, a Bíblia sempre foi um texto fundamental para o preparo tanto pastoral quanto missionário. No final dos anos 70, surgiu uma nova conscientização da responsabilidade missionária da igreja¹. Tipicamente havia forte apelo às passagens bíblicas classicamente “missionárias” como a “grande comissão nos Evangelhos”. Mas também havia tentativas de elaborar a temática missionária ao longo das Escrituras².

Com o desafio missionário, logo apareceram programas de preparo para o envio. A princípio, estes programas eram curtos, geralmente de poucas semanas, às vezes de um ou dois meses. Eventualmente os cursos se tornaram mais substanciais e incluíram matérias bíblicas³. Hoje, é comum estudar “teologia bíblica de missão” ou “fundamentos bíblicos para a obra missionária da igreja”. Nestas disciplinas, os grandes temas bíblicos de eleição, aliança, justiça e julgamento, esperança messiânica e salvação, criação e nova criação são interligados e tecidos em um pano de fundo bíblico essencialmente missionário.

Outro contexto muito importante onde a Bíblia é estudada com bastante proveito na perspectiva da missão da igreja é nos grandes encontros, congressos e conferências nacionais e internacionais. Recentemente, a carta aos Efésios foi estudada em pequenos grupos durante uma hora ou mais por milhares de líderes cristãos do mundo inteiro na Cidade do Cabo, no III Congresso Internacional de Evangelização – Lausanne III.  Há anos que todas as reuniões do Concílio Mundial de Igrejas iniciam os dias com uma reflexão da Bíblia sobre a missão da igreja e o mesmo pode ser dito sobre o Congresso Brasileiro de Missões, além de outros semelhantes.

A Bíblia como ferramenta de missões
 
A história do desenvolvimento e expansão do povo de Deus [missão] simplesmente não pode ser contada sem referência à tradução da Bíblia. São praticamente uma e a mesma história. Começa com o surgimento e a recuperação das Escrituras pelos judeus4.

Quando os judeus foram levados para o cativeiro no século VI, surgiram as primeiras traduções das Escrituras para o aramaico [o Targum], que se tornou a língua franca do exílio. Assim, estas traduções serviram tanto para manter a identidade dos judeus enquanto estavam longe das suas terras, quanto para divulgar os preceitos das Escrituras hebraicas entre os estrangeiros. 
 
Com o retorno de alguns judeus para as suas terras depois do exílio babilônico e a dispersão de um número muito maior por todo o mundo antigo eventualmente dominado pelos gregos, a tradução das Escrituras hebraicas para grego durante os séculos II e III [Septuaginta] foi instrumental na manutenção da identidade cultural e religiosa dos judeus. Esta nova tradução para e a sua exposição nas sinagogas se tornaram os principais instrumentos missionários dos judeus para os não judeus e a inclusão destes “tementes a Deus” nas sinagogas por todo o império romano antes, durante e depois do surgimento do cristianismo.

A compilação dos documentos da igreja primitiva levou cerca de 300 anos, em grego, submetida a várias coletâneas até se completar, somente no século IV D.C.. Também exerceu um papel fundamental na consolidação e expansão da igreja primitiva. As citações feitas por Paulo na sua carta aos Romanos, o testemunho no livro de Atos da leitura regular das Escrituras nas reuniões da igreja e a afirmação de Pedro da circulação das cartas de Paulo nas primeiras comunidades cristãs são evidências do papel pastoral e missionário das Escrituras.

Não demorou muito para a expansão espantosa do cristianismo por todo o império romano. Tal expansão se deve a muitos fatores, acima de tudo, ao esforço missionário e testemunho corajoso dos primeiros cristãos. Hoje, sabemos que aspectos físicos e linguísticos facilitaram a expansão, como a rede de estradas romanas construídas para todos os lados e grego como língua franca pelo menos na parte oriental do império. Mas, outro fator enorme era a existência e a subsequente tradução das Escrituras. Desde o início, a fé judaico-cristã foi uma fé do “livro”, e este livro acompanhou o seu crescimento. Logo se fez necessária uma tradução para o latim. Jerônimo se encarregou de consolidar esforços anteriores e produzir eventualmente a Vulgata entre 382 e 420 D.C.. Assim, favoreceu a expansão missionária em Roma e regiões ocidentais e setentrionais.

Nas regiões do antigo império Sírio, conquistadas séculos atrás pelos gregos, o Antigo Testamento foi traduzido para siríaco já no século II D.C., e o Novo Testamento nos séculos II e IV. Lá, um dos maiores movimentos missionários da história ascendeu: os nestorianos, que levou o evangelho até a Índia e China. Até hoje esta tradução, conhecida como a Peshitta, é usada por cristãos por todo o Oriente Médio.

Havia outras traduções da Bíblia nesta época e o seu impacto missionário também era grande. Ulfilas fez uma tradução para godo no século IV, instrumento na evangelização de bárbaros germânicos na Romênia. Traduções também para saídica, língua egípcia. No século V, São Mesrob fez uma tradução para o armênio e assim evangelizou boa parte da Armênia, de tal modo que se este se tornou o primeiro país oficialmente “cristão”. Outras traduções deste período incluíam a copta para o Egito, a nubiana antiga para o Sudão, a etiópia para a Etiópia, e a georgiana para o sul da Rússia.

Avançando mais na história, importantes traduções incluem para o inglês antigo, por São Beda, e para o alemão antigo no século VIII. As primeiras traduções para o chinês pelos nestorianos5 também ocorreram no século VIII, e o antigo eslavônico por Cirilo e Metódio no século IX para a região dos Bálcãs e a Morávia. Essa lista vai longe. No século XIII a Bíblia já estava disponível em 22 línguas.

No século XVII, o Evangelho de Mateus foi traduzido para o malaio, na Polinésia. Também João Elliot traduziu a Bíblia para algoniquim, língua dos índígenas que habitavam Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos. No período moderno, é preciso destacar a importância missionária da tradução da Bíblia, ou partes dela, para o Tamil na Índia, pelo missionário dinamarquês Bartolomeu Ziegenbalg. Para o Bengali, Sânskrito. Para outras línguas, pelo inglês William Carey, conhecido popularmente como o “pai” das missões modernas. 

Na mesma época, o americano Adoniram Judson, que serviu na Birmânia, traduziu a Bíblia para a língua burmanesa e o inglês Henrique Martyn traduziu o Novo Testamento para o urdu, o persa e pérsico-judaico. E o dinamarquês, Paul Olaf Bodding, a traduziu para Santali, língua da Índia oriental. No século XIX, a Bíblia foi traduzida em cerca de 400 novas línguas e no século XX em mais de 800. Em cada um destes casos, é possível, até necessário, correlacionar a tradução da Bíblia com a expansão missionária do evangelho, e isto se repetiu centenas de vezes ao longo da história.

Conclusão
O mais surpreendente para nossa reflexão não é a correlação entre a Bíblia e a obra missionária. Também não é o papel prático da redação, compilação, tradução e distribuição da Bíblia no avanço dos propósitos de Deus no mundo desde a antiguidade. Mas, o mais surpreendente é que demoramos em reconhecer isto, promover fóruns sobre o assunto, estudar com bom proveito esta correlação a fim de nos perguntar: como, então, podemos melhor nos empenhar na missão de Deus em direção a sua nova criação, novos céus e nova terra, por meio deste instrumento e bússola tão precioso?

Notas
¹A ABUB promoveu uma primeira conferência missionária nacional em Curitiba em 1974.
2 Por exemplo, o meu livro, Missões na Bíblia. Princípios Gerais (São Paulo: Vida Nova, 1992) surgiu como uma compilação de palestras dadas em uma conferência missionária em 1983.
3 A primeira escola que ofereceu cursos de formação missionária de um a dois anos foi o Centro Evangélico de Missões (CEM), em 1983.
[Timóteo Carriker]

Crônicas de Nárnia em Hollywood: exageros e omissões


Muitos fãs das Crônicas de Nárnia me perguntam o que penso dos filmes baseados nos livros. De maneira geral, costumo dizer que a comunidade cristã, pelo menos nos Estados Unidos e Inglaterra, tem se manifestado e criado uma “vigilância” sobre o que aparece nas telas. Outro fator interessante é que o enteado de Lewis, Douglas Gresham, foi designado codiretor de todas as produções. Douglas tem um cuidado extremo com o patrimônio cultural de seu padrasto, tanto que ele praticamente está por dentro de tudo o que é publicado sobre Lewis, responsável por sua condução à conversão e ao chamado para a missão que ele exerce atualmente.
 
Dito isso, é claro que as estratégias mercadológicas e de marketing dos filmes não podem ser desprezadas, principalmente por se tratar de uma máquina de produção chamada “Walt Disney”, além de seus interesses nem sempre compatíveis com o cristianismo.
 
Dessa forma, logo no primeiro filme, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas, há cenas de batalhas bem mais hollywoodianas do que aquelas descritas no livro. Mas, mesmo assim, alguns espectadores, principalmente meninos mais novos, acharam as batalhas “fraquinhas” demais.  São adolescentes acostumados com a violência de videogames e de outros filmes. Essa opinião foi suficiente para que o segundo filme, Príncipe Caspian, “caprichasse” ainda mais nesse quesito.
 
O segundo filme também mostra algo que seria inusitado para Lewis: o romance entre Susana e Cáspian, que só não foi para frente na terceira produção porque a mocinha simplesmente não participa dessa aventura. Isso não significa que ela não é honrosamente lembrada na imaginação de Lúcia, ao abrir o livro mágico em A Viagem do Peregrino da Alvorada. Aliás, nesse filme, há introdução de personagens e cenas inexistentes no livro.
 
Nesse aspecto, Príncipe Caspian é o mais fiel ao livro. Contudo, algumas modificações são até compreensíveis em uma adaptação para o cinema, que sempre envolve uma “tradução” de uma mídia para outra. Ela não seria perfeita se fosse um retrato rigoroso e fiel do suporte escrito, que despreza as características próprias da linguagem cinematográfica. Em alguns casos, a versão do cinema até amarrou “fios soltos” e fez pontes entre cenas um pouco desconexas nos livros. A legitimidade disso pode ser questionada, mas tendo a vê-la com bons olhos, desde que a essência do conteúdo e da mensagem seja mantida.
 
O que é difícil justificar são algumas omissões, mais visíveis no terceiro filme. Por exemplo, na cena em que Aslam faz com que Eustáquio volte para o formato humano, o livro conta que leão literalmente “esfola” as escamas do personagem com as suas garras, em um processo demorado e doloroso. No filme, ele se limita a arranhar o chão em um gesto simbólico, ou incompreensível para os desavisados, e a promover a descamação de Eustáquio com um rugido.
 
Ou seja, a pergunta teológica que surge é: Eustáquio tinha mesmo que passar por esse sofrimento? No filme, há apenas uma constatação da redenção de Eustáquio por Aslam em um passe de mágica. No livro, por sua vez, há um processo e uma causalidade que muito lembra outras cenas das Crônicas, como a de Edmundo nas garras da feiticeira, além de tantas outras passagens dos clássicos de Lewis, O Problema do Sofrimento e o menos conhecido, Anatomia de uma Dor. Deus fala conosco nos bons momentos, mas grita nos sofrimentos, que são o seu “megafone”. Ele é como um dentista, como um cirurgião que pode nos machucar em consequência de uma causa, ao longo do processo de cura. Tal dor não tem poder de redenção, que é prerrogativa de Aslam.
 
Há inúmeras outras cenas de omissão que deixaremos para as “cenas do próximo artigo”, pois vale a pena aprofundá-las. Fica aqui a pergunta, por enquanto: O que omissões como essa querem dizer? Que a cena do dragão com Aslam era complexa ou “teológica” demais para merecer o carimbo da Disney?

[Gabriele Greggersen]